“Severino”, o disco tropicalista dos Paralamas do Sucesso

O começo dos anos 90 não foram muito gentis com o rock nacional. Em meio ao segundo Plano Collor e uma inflação cada vez mais alta, o mainstream era dominado pelo sertanejo – e Daniela Mercury – as bandas oriundas dos anos 80, salvo pouquíssimas exceções, vendiam cada vez menos, e a maioria das que surgiam no underground emulavam o rock alternativo gringo da época não só no som, mas também no idioma, na tentativa de seguir os passos do Sepultura e alcançar fama (ou ao menos um hypezinho) internacional. Uma sobrevida de relevância viria apenas com o estouro de bandas como Skank, Raimundos e Pato Fu no meio da década, além do surgimento do manguebeat vindo de Recife (Chico Science & Nação Zumbi, Mundo livre S/A), mas isso após alguns anos complicados pra o estilo.

Entre os pilares do chamado “BRock”, enquanto  os Titãs embarcavam na onda “grunge” e a Legião Urbana ficava cada vez mais introspectiva, os Paralamas do Sucesso abraçavam suas raízes brasileiras, algo que já aparecia progressivamente nos discos desde o clássico Selvagem? (1986). Nessa toada, lançaram o bom Os Grãos em 1991, que continha os sucessos “Tendo a Lua” e “Trac Trac” (versão em português de uma música de Fito Paez), mas que ainda assim não alcançou vendas satisfatórias e foi espinafrado pela crítica, que queria enterrar de vez os grupos do rock oitentista tupiniquim – além da má vontade de muitos na época com bandas que flertavam com a MPB. De positivo apenas o crescente sucesso em outros países sul-americanos, especialmente a Argentina, onde até lançaram uma coletânea com versões em castelhanos de alguns de seus principais sucessos.

Talvez justamente pelo êxito recente em terras nem tão distantes – em contraste com a indiferença local – o trio tenha tido coragem suficiente para arriscar ainda mais em seu disco seguinte. Gravado na Inglaterra, com a  produção de Phil Manzanera (Roxy Music) e contendo diversas participações especiais (tanto nacionais quanto internacionais), Severino já parecia estranho pela capa, e musicalmente ia ainda mais fundo nas influências brasileiras, com letras de forte cunho político social – bastante influenciadas pelo poeta João Cabral de Melo Neto – e canções muitas vezes sem melodias e refrões tão palatáveis quanto outrora. Pode-se dizer que se trata de um disco merecedor da alcunha de “tropicalista” – movimento do final dos anos 60 capitaneado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, e poetas como Torquato Neto e Capinam – com a típica junção de tradição e modernidade (ainda que isso não seja algo exclusivo desse estilo), tudo isso atualizado para os anos 90.

Após a abertura com “Não Me Estrague o Dia”, com fortes acentos nordestinos, a quase inclassificável “Navegar Impreciso” já confunde de cara a cabeça do ouvinte. Vocais “rapeados” (ou recitados) de Tom Zé e Linton Kwesi Johnson – na parte em inglês da letra – mais metais do que guitarras, melodia reta…nada fácil de digerir a primeira vista. Mas trata-se de uma boa canção, e com uma ótima letra de Herbert Vianna. Músicas nem na época notadas como “Varal” e a climática “Réquiem do Pequeno” mantinham o nível, enquanto que “O Rio Severino”, já registrada no primeiro disco solo de Herbert, Ê Batumaré, aparece aqui com outra introdução e uma sonoridade mais bem definida – e pesada. Já a funkeada “Vamo Batê Lata”, cita nominalmente Carlinhos Brown e o grupo Moleque de Rua (alguém ainda lembra deles?) em mais uma mostra da influência tropicalista já falada.

A balada “El Vampiro Bajo El Sol”, parceria de Herbert com Fito Paez, agrada, apesar do castelhano esquisito do paralama, e ainda contém um solo de guitarra de ninguém menos que Brian May. Melhor ainda é a dobradinha que vem a seguir, com a “Músico”, com letra de Tom Zé e guitarras com influência de surf music, e a mezzo-eletrônica “Dos Margaritas”, onde os vocais ganham um destaque notável – como em todo o resto do álbum, aliás. “Cagaço”, que cita o poeta Waly Salomão e foi o primeiro single do disco – e não emplacou nas rádios. Compreensível, já que não se tratava exatamente de uma música com cara de hit, mas nem por isso é menos (muito) boa. Já o encerramento fica por conta da bela “O Amor Dorme”, onde mais uma vez o lado baladeiro e mais melodioso do grupo aparece bem representado. No versão nacional, ainda saíram como faixas bônus – e cantadas em espanhol – uma cover de “Go Back”, dos Titãs, e uma versão de “Quase Um Segundo”, dos próprios Paralamas, com o piano tocado por Egberto Gismonti. Valem mais pela curiosidade do que qualquer outra coisa, mas nada que comprometa o resultado final.

Quando você arrisca como Herbert, Bi e Barone arriscaram por aqui, o natural é que as vendas sofram. Mas o disco até que atingiu um bom sucesso comercial…na Argentina, onde uma versão em castelhano foi lançada como Dos Margaritas (e com o acréscimo de faixas de discos anteriores). Aqui no Brasil, o trio só reapareceria nas paradas após o lançamento do ao vivo Vamo Batê Lata, que atingiu a marca de um milhão de cópias vendidas, puxado principalmente pelo sucesso da inédita (de estúdio) “Uma Brasileira”. Mas mesmo com o passar do tempo Severino parece não ter sido muito redescoberto. O que é uma pena, já que se trata de um dos melhores discos da carreira da banda.

Paralamas do Sucesso - Dos Margaritas - Capa

Capa da versão em espanhol

Deixe um comentário